Quando a pandemia se apresentou para o mundo, no início de 2020, ficamos em suspensão. O que seria da humanidade? O que seria de “mim” (a pergunta que todo e qualquer ser humano na superfície do planeta se fazia)? Aos poucos, a sombra da morte provocou invenções da vida... Assim, de dentro da quarentena, no centro excêntrico que é Brasília (e voltado para o Brasil), surgiu o 40ANTENASDC, projeto de arte que propunha relatar e compartilhar a produção poética de quarenta artistas no isolamento... Depois de algum tempo, as lives dos participantes, com formato livre e, portanto, variado, começaram a desvelar a intimidade da criação “confinada”. Eu tinha sido convidada para fazer o acompanhamento crítico da evolução do trabalho, junto à curadoria, o que me dava um lugar privilegiado de observação. Que universo...
Em meio às apresentações, surge a Lara Ovídio (@somos_jovenes_y_hay_sol) com proposta de dar voz a muitas vozes a partir da sua (algo curioso). Em “Com quantos diários se faz uma quarentena” nome da sua live, ela partia de seu texto poético, excertos de um diário, e convocava vinte mulheres, espalhadas por vários lugares, para lerem os seus. Dessa colagem de leituras, surge uma fala surpreendentemente coesa... Então, em meio à separação, as participantes se unem em uma mesma narrativa sutilmente... épica (essa contradição é possível?). Ali, na revelação da particularidade do relato íntimo comunicado em rede, descobri uma primeira história dos tempos pandêmicos (estávamos em junho de 2020). Eu, que sou de outra geração — não acostumada com esse vertiginoso trânsito entre o privado e o público —, sempre me surpreendo com as possibilidades poéticas dessa exposição...
Agora, com mais de um ano de pandemia e isolamento, Lara me convoca a apresentar o livro Fazia Calor e Usávamos Máscaras, desdobramento (e amadurecimento) da proposta anterior. Este é um conjunto de escritos diversos que paradoxalmente não se leem como um livro de contos de vários autores, por exemplo. Ele tem muitas vozes, formatos diversificados, mas que vão se enredando e formando um só tecido (uma teia?) de texto e imagens. Nas manifestações subjetivas, o trivial, rotineiro, o invisível da vida cotidiana vai subversivamente se travestindo em relato exemplar. Sua abordagem —– que se supõe ser um certo imiscuir-se no universo do outro (como em uma carta roubada) — torna-se uma proposição de tipos humanos nos quais nos reconhecemos (e essa não é a qualidade dos diários de escritores que nos capturam?). As autoras — poetas, artistas visuais, atrizes, revisoras, tradutoras... amigas umas das outras —, com vozes que vêm do nordeste, ou do centro, de outros países, ou dali, da vizinhança da Lara, na cidade do Rio, experimentam a aproximação pelo semiapagamento da autoria em favor da continuidade da narração por fragmentos. Nesse caso, as próprias imagens compostas por cada autora parecem amarrar um texto ao outro, pois, curiosamente, parecem negar-se a ilustrar. São pontuações que dão seguimento ao fluxo da escrita. A escrita que conduz nossos olhos pela superfície das páginas...
... Das polaroides (instantâneos) e fugas (em andamento), pelas quais entramos em um ambiente evocador de Patti Smith e Marcel Duchamp, nos deslocamos para a poesia que queima o corpo isolado;
... Da escrita lírica que se contrapõe aos prazos da fala da academia à constatação de que não estávamos em um período de exceção (ela virou uma assustadora regra), em dia de maré cheia;
... Da constatação de que desaprendemos coisas que nos pareciam naturais (já não sei mais beijar?) à requisição de movimento como base da conexão com o real;
... Do voltar aos cadernos cobertos com a própria caligrafia à inscrição da linha que é levada pela agulha;
... De um reconhecimento de si pela solidão ao aparecimento onírico, subvertendo a separação entre sono e vigília;
... Da fala de amor que requisita presença na ausência à autorrevelação destemida e compartilhada;
... Da observação do filho descobrindo o mundo como metáfora da quarentena à reflexão política que assombra a vida quando se volta o olhar para o outro;
... Da memória de um tempo de antes inscrita no agora ao inventário das perdas e sua substituição (pelo quê?);
... Da outra memória, a das coisas que incorporam sua história quando são deslocadas de seus lugares, à presentificação dos que partiram definitivamente (e são tantos) ... e assim de volta às polaroides.
Esse parece ter sido meu percurso pelo livro. E ele me dá a dimensão de uma polifonia que simboliza a pandemia (que ainda se conta, até quando?). Nisso há uma emulação da tradição das trocas entre mulheres que atravessam os séculos, como se repetíssemos, de forma diferente, aquilo que nos forma (escritoras e/ou leitoras).
Quando terminei de explorar o tecido a tantas mãos, quis saber um pouco mais sobre as autoras. Mas não havia as minibiografias que contextualizam as falas para nós. Voltando às primeiras páginas, encontrei uma lista de endereços do Instagram e descobri que seria assim que elas se apresentariam para mim. E essa foi uma viagem na rede que me fez reconhecer tantas aproximações, tantos pensamentos e projetos em comum. Fazia Calor e Usávamos Máscaras é um trabalho colaborativo de construção da história cotidiana de mais de um ano de exceção.
Nos lembraremos desse tempo pelo que está escrito na carne, como indelével cicatriz, e pela escritura que não deixará que a poesia da adversidade se perca.
Marília Panitz @mariliapan (2021) | Prefácio do livro Fazia Calor e Usávamos Máscaras - vol. II