Screen Shot 2021-07-28 at 12.44.18.png

textos

 No conjunto da mostra destacam-se, com certa particularidade, as obras de José Diniz, Julia Milward, Lara Ovídio, Andréa D’Amato e Véronique Isabelle. O trabalho com o tempo empreendido por esses artistas se dá por meio do objeto. […] As imagens de Lara Ovidio, em Territórios Perecíveis, parecem ter saído de uma caixa de guardados e dispostas aleatoriamente como quem procura algo que se perdeu. De fato, a artista monta suas fotografias, objetos, textos, como quem recolhe fragmentos seus, pequenas amostras que atestam sua presença no tempo. Todos são índices que constituem um ato performático.
Mariano Klautau (2015) | VI Prêmio Diário Contemporâneo


As coisas banais que nos rodeiam também nos constituem. Às vezes, somos feitos essencialmente delas. Podemos aguardar a oportunidade de um feito grandioso, ou podemos assumir que nossa história será contada a partir dos pequenos acontecimentos. Essa narrativa será um tanto silenciosa, e será feita de uma gramática imprecisa. Porque buscar o lugar certo de cada uma dessas coisas banais é uma ciência que tende ao fracasso. Mesmo assim, é uma espécie de compromisso estético que assumimos com esses objetos que, afinal, nos dão existência. Reunidos em seu equilíbrio precário, eles se tornam monumentos dedicados não aos fatos que almejam uma história universal, mas à singularidade que as coisas efêmeras adquirem quando nos identificamos com elas. No fluxo que a modernidade imprime ao tempo, heroico é cada gesto capaz de participar do instante. 
Ronaldo Entler | Galeria Paragem (2016)


Nos dois trabalhos apresentados por Lara Ovídio é a possibilidade real de comunicação que é colocada em questão. Em uma dimensão mais pessoal, suas anotações, feitas ao longo de anos, são reunidas e colocadas sobre uma mesa. A leitura é no entanto impossível, já que uma pedra não permite folhear esse material. Já em sua atuação em sala de aula, ela pede que seus alunos que listem as palavras usadas por ela e que eles não sabem o significado. Essa coleta contínua se materializa no espaço expositivo a partir dos verbetes com a definição de cada uma delas. Ver esse conjunto traz a espantosa constatação do quanto falamos e podemos não estar sendo entendidos.
Fernanda Lopes | Dias Úteis (2019)


A Frase Verde da artista Lara Ovídio, “Não sou eu quem vai salvar o mundo”, flutuando no lado deste Jardim, chama nossa atenção com sarcasmo e ironia para a reflexão do que cabe a cada um no desafio de retroceder no avanço em direção ao apocalipse. Sim, não serei “eu”, seremos “nós”. A percepção do coletivo vem nos provocando e se instalando como uma urgência. O grupo Preserva Catete, que idealizou a exposição GRAU 360, atendendo a esse chamado, reuniu vizinhos para pensar e agir no aqui e agora. É uma iniciativa afirmativa direcionada ao nosso estar no mundo, atuando no micro para somar no macro.
Martha Niklaus (2019) | Exposição Grau 360


Quando a pandemia se apresentou para o mundo, no início de 2020, ficamos em suspensão. O que seria da humanidade? O que seria de “mim” (a pergunta que todo e qualquer ser humano na superfície do planeta se fazia)? Aos poucos, a sombra da morte provocou invenções da vida... Assim, de dentro da quarentena, no centro excêntrico que é Brasília (e voltado para o Brasil), surgiu o 40ANTENASDC, projeto de arte que propunha relatar e compartilhar a produção poética de quarenta artistas no isolamento... Depois de algum tempo, as lives dos participantes, com formato livre e, portanto, variado, começaram a desvelar a intimidade da criação “confinada”. Eu tinha sido convidada para fazer o acompanhamento crítico da evolução do trabalho, junto à curadoria, o que me dava um lugar privilegiado de observação. Que universo...

Em meio às apresentações, surge a Lara Ovídio (@somos_jovenes_y_hay_sol) com proposta de dar voz a muitas vozes a partir da sua (algo curioso). Em “Com quantos diários se faz uma quarentena” nome da sua live, ela partia de seu texto poético, excertos de um diário, e convocava vinte mulheres, espalhadas por vários lugares, para lerem os seus. Dessa colagem de leituras, surge uma fala surpreendentemente coesa... Então, em meio à separação, as participantes se unem em uma mesma narrativa sutilmente... épica (essa contradição é possível?). Ali, na revelação da particularidade do relato íntimo comunicado em rede, descobri uma primeira história dos tempos pandêmicos (estávamos em junho de 2020). Eu, que sou de outra geração — não acostumada com esse vertiginoso trânsito entre o privado e o público —, sempre me surpreendo com as possibilidades poéticas dessa exposição...

Agora, com mais de um ano de pandemia e isolamento, Lara me convoca a apresentar o livro Fazia Calor e Usávamos Máscaras, desdobramento (e amadurecimento) da proposta anterior. Este é um conjunto de escritos diversos que paradoxalmente não se leem como um livro de contos de vários autores, por exemplo. Ele tem muitas vozes, formatos diversificados, mas que vão se enredando e formando um só tecido (uma teia?) de texto e imagens. Nas manifestações subjetivas, o trivial, rotineiro, o invisível da vida cotidiana vai subversivamente se travestindo em relato exemplar. Sua abordagem —– que se supõe ser um certo imiscuir-se no universo do outro (como em uma carta roubada) — torna-se uma proposição de tipos humanos nos quais nos reconhecemos (e essa não é a qualidade dos diários de escritores que nos capturam?). As autoras — poetas, artistas visuais, atrizes, revisoras, tradutoras... amigas umas das outras —, com vozes que vêm do nordeste, ou do centro, de outros países, ou dali, da vizinhança da Lara, na cidade do Rio, experimentam a aproximação pelo semiapagamento da autoria em favor da continuidade da narração por fragmentos. Nesse caso, as próprias imagens compostas por cada autora parecem amarrar um texto ao outro, pois, curiosamente, parecem negar-se a ilustrar. São pontuações que dão seguimento ao fluxo da escrita. A escrita que conduz nossos olhos pela superfície das páginas...

... Das polaroides (instantâneos) e fugas (em andamento), pelas quais entramos em um ambiente evocador de Patti Smith e Marcel Duchamp, nos deslocamos para a poesia que queima o corpo isolado;

... Da escrita lírica que se contrapõe aos prazos da fala da academia à constatação de que não estávamos em um período de exceção (ela virou uma assustadora regra), em dia de maré cheia;

... Da constatação de que desaprendemos coisas que nos pareciam naturais (já não sei mais beijar?) à requisição de movimento como base da conexão com o real;

... Do voltar aos cadernos cobertos com a própria caligrafia à inscrição da linha que é levada pela agulha;

... De um reconhecimento de si pela solidão ao aparecimento onírico, subvertendo a separação entre sono e vigília;

... Da fala de amor que requisita presença na ausência à autorrevelação destemida e compartilhada;

... Da observação do filho descobrindo o mundo como metáfora da quarentena à reflexão política que assombra a vida quando se volta o olhar para o outro;

... Da memória de um tempo de antes inscrita no agora ao inventário das perdas e sua substituição (pelo quê?);

... Da outra memória, a das coisas que incorporam sua história quando são deslocadas de seus lugares, à presentificação dos que partiram definitivamente (e são tantos) ... e assim de volta às polaroides.

Esse parece ter sido meu percurso pelo livro. E ele me dá a dimensão de uma polifonia que simboliza a pandemia (que ainda se conta, até quando?). Nisso há uma emulação da tradição das trocas entre mulheres que atravessam os séculos, como se repetíssemos, de forma diferente, aquilo que nos forma (escritoras e/ou leitoras).

Quando terminei de explorar o tecido a tantas mãos, quis saber um pouco mais sobre as autoras. Mas não havia as minibiografias que contextualizam as falas para nós. Voltando às primeiras páginas, encontrei uma lista de endereços do Instagram e descobri que seria assim que elas se apresentariam para mim. E essa foi uma viagem na rede que me fez reconhecer tantas aproximações, tantos pensamentos e projetos em comum. Fazia Calor e Usávamos Máscaras é um trabalho colaborativo de construção da história cotidiana de mais de um ano de exceção.

Nos lembraremos desse tempo pelo que está escrito na carne, como indelével cicatriz, e pela escritura que não deixará que a poesia da adversidade se perca.
Marília Panitz @mariliapan (2021) | Prefácio do livro Fazia Calor e Usávamos Máscaras - vol. II