bitácora

#4

A imagem do pulmão que lhe acompanhava era própria. Nem uma miniatura de biscuit, nem uma imagem de enciclopédia, nem nada demais, apenas uma radiografia. Algumas vezes, olha apressadamente essa imagem, que já olhara tantas outras vezes, sente um certo medo de encontrar qualquer coisa que não deveria estar ali e desvia o olhar. Outro dia soube de uma mulher com 20 lentes de contato dentro de um olho e de um chinês com uma colher posicionada no esôfago. A radiografia do chinês parecia à sua, mas entre os pulmões estava uma colher que só pode ser retirada depois de 3h de cirurgia e um exercício de pescaria com uma máquina de laparoscopia. Outras vezes, posiciona a radiografia contra a janela e fica olhando demoradamente na esperança de que ao ver seus adentros, entenda qualquer coisa a mais sobre si. Conhece-te a ti mesmo, pode talvez abranger a fisiologia. De alguma maneira lhe encanta esse gosto da civilização de ver-se por dentro. No último ano viu-se muito: pés, pulmão, pulso direito, abdomem, mama e útero. Decidiu conhecer seus brânquios, pleura, lobos e alvéolos por uma tosse que insistia em não passar. Quis ter certeza que não havia nada demais alí, já que é de conhecimento popular os múltiplos focos de tuberculose na cidade em que vive. Recebera a recomendação de um doutor que além de acreditar no que as imagens mostram, acredita também no que elas podem prever. Nesses momentos, a imagem do pulmão se assemelha aos fígados de ovelha usados para vaticínios na antiguidade, com a diferença de que seu pulmão só é capaz de vaticinar seu próprio destino. Nada é mais assustador que isso.